Por João Paulo Araújo de Carvalho (professor, historiador, mestre em História, coordenador do Projeto Memórias)
Na tarde de domingo, 17 de outubro de 2010, como de costume, lia o Jornal da Cidade, quando me deparei com o caderno “Municípios” e em sua primeira página a chamada de uma matéria com o seguinte título “Dores completa 90 anos de emancipação” (edição nº 11477, ano XXXIX), publicada também no jornaldacidade.net. Na mesma, situada à página 8 do referido caderno, encontra-se um anacronismo que há anos vem sendo reproduzido e que me fez recordar o historiador Manoel Moura, que em seu cordel “Dores: lugar de se enforcar” (2010, p. 4) diz “Aquilo que escreveram ⁄ Eu vou jogar num pinico ⁄ Pois é um erro grosseiro ⁄ E não vou pagar o mico ⁄ Não importo se alguém ⁄ Pra mim vai torcer o bico”.
Numa matéria bem escrita, com destaque a grandes nomes de nossa cultura, mas esquecendo outros de igual relevância, e ao progresso que Dores teve nesta última década, o texto reproduz a infeliz ideia de que Dores tem apenas 90 anos de emancipação política e que este fato deve ser comemorado no dia 23 de outubro.
Como pode tão conceituado meio de comunicação, com uma invejável história no jornalismo sergipano, se deixar enganar por fontes que reproduzem erros tão grosseiros? E o pior, com base em informações dadas em entrevista por um “historiador”, que deveria ter criticado suas fontes para não cair no anacronismo, o que se aprende ainda no primeiro período do curso de História, e jogar seu diploma no lixo ao dizer que “em outubro são realizadas diversas atividades (...) em comemoração à emancipação política do município”. No início da malfadada matéria, se lê ainda que “o município de Nossa Senhora das Dores, distante 72 quilômetros de Aracaju, completa 90 anos de sua emancipação política, alcançada em 23 de outubro de 1920”.
Isso poderia até ser perdoado, se não viesse ocorrendo desde 2006, e especialmente de 2009 para cá, ampla divulgação através do Projeto Memórias, em seu informativo “Memórias Dorenses”, de pesquisas históricas embasadas nas mais variadas fontes e escritas por jurista e historiadores contrariando esta assertiva. Não se trata aqui de versões diferentes dos fatos, algo comum na história, ciência tão subjetiva, mas de um erro primário e grosseiro na análise de um fato tão óbvio.
Vejamos: das três datas magnas da história de Nossa Senhora das Dores, duas emanam de um só contexto. A da fundação da Freguesia (28 de abril de 1858) e a da Vila (11 de junho de 1859). A Freguesia estava no campo eclesiástico e representava a criação de Paróquia e Distrito Administrativo, sob responsabilidade de um sacerdote residente em sua sede. Com ela, nascia o embrião da Vila, no campo político-administrativo. Tanto é que a elevação de N. Sra. das Dores a esta categoria veio no ano seguinte.
Como se pode ver em “A origem dos municípios e a criação do município de N. Sra. das Dores”, artigo oportuno do advogado e escritor dorense José Lima Santana, componente da 5ª edição do “Memórias Dorenses” (2009), o artigo 167 da Constituição de 1824, vigente à época da criação da Vila das Dores, “em todas as cidades e vilas ora existentes, e nas mais que para o futuro se criarem, haverá Câmaras, as quais competem o governo econômico e municipal das cidades e vilas”.
Está tão evidente que a emancipação política de N. Sra. das Dores se deu a 11 de junho de 1859, com a criação do município, e não a 23 de outubro de 1920! Afinal, no Império do Brasil, os municípios, como hoje, eram formados por sua sede administrativa e seus povoados e demais logradouros. Porém, diferente da atualidade, a sede dos mesmos recebia o status de Vila ou de Cidade, dependendo do número de habitantes da municipalidade. Tal posição interferia na composição do Conselho Municipal, que podia ser formado por 7 ou 9 vereadores, respectivamente.
Como N. Sra. das Dores, igualmente à grande parte das urbes sergipanas de então, não tinha a quantidade mínima de residentes para ser cidade (15 mil), foi ereto tendo sua sede o status de Vila, deixando de pertencer politicamente à Vila da Capela. Só alcançou esta categoria mater, isto é, a de cidade, após obter tal número, ou seja, em 1920.
Aos que ainda insistem na tese da emancipação a 23 de outubro de 1920, é só perceber que após a criação da Vila de N. Sra. das Dores (pela Resolução Provincial nº 555 de 11 de junho de 1859), a mesma passou a ter Conselho Municipal (equivalente à atual Câmara de Vereadores), encarregado de criar leis (as “posturas municipais”) que regiam a administração da mesma, a cargo do Intendente (hoje chamado de Prefeito). É só ir ao Arquivo Publico do Estado de Sergipe (APES) e consultar a coleção “Câmara” e isso se confirmará. Ah! Tem mais: tinha até sede do Governo Municipal, construída em fins do século XIX, onde ficava a Intendência, o Conselho e o Judiciário. Está lá a foto de 1919, quando Dores ainda era Vila, publicada no “Álbum de Sergipe” (1920)!
Se a Vila não era emancipada, só vindo a ser em 1920, pra que diabos ela tinha vereadores, prefeito, leis municipais e até sede da administração pública? Mas por que será que em Dores a comemoração se dá às avessas? Será o peso da tradição, que de forma errônea consagrou desde muito tempo o “23 de outubro” como independência? Será a falta de pesquisas mais profundas por parte de alguns “historiadores” que reproduzem equívocos sem a devida crítica? Será a teimosia, pois, mesmo com a publicação do artigo do Dr. José Lima, amplamente difundido, e a sapiência de muitos, ainda se fez eventos alusivos aos “90 anos de emancipação” neste 2010? Ou será a maldição que carregamos desde os tempos primevos, de tudo se enforcar, até mesmo a história?
Ah! a Câmara de Vereadores do Município fez sua parte e já procedeu a correção deste erro inaceitável. Em sessão histórica na última segunda-feira (18), os edis aprovaram por unanimidade projeto-lei que muda o título do feriado de 23 de outubro para "Aniversário da Cidade e Dia da Dorensenidade" (este último numa referência à identidade cultural dorense e ao orgulho de ser dorense), criando ainda o 11 de junho como "Dia da Emancipação Política do Município" e corrigindo o brasão do município, que recebe a data correta de sua criação (11 de junho de 1859).
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